800 anos dos Estigmas de São Francisco de Assis 1224 -2024
800 anos dos Estigmas de São Francisco de Assis 1224 -2024
O amante se transforma no Amado
Eis o oitavo centenário da estigmatização de São Francisco de Assis. Para começarmos a entender a importância e o significado desse evento, recorramos inicialmente às descrições biográficas do fato para entendermos primeiramente O QUE se deu, também com algumas informações de COMO se deu o ocorrido. Os relatos são vários, dos mais poéticos aos mais objetivos e decidi transcrever aqui o de frei Juliano de Espira, frade alemão contemporâneo à morte de São Francisco (1226 d.C.). Os devotos interessados num aprofundamento, podem recorrer também aos relatos de Tomás de Celano (1Cel 94-95; 3Cel 4), de São Boaventura (LM XIII; Lm VI) ou dos Três Companheiros (LTC 69) e fazer, inclusive, comparações entre as diversas linguagens, gêneros literários e subjetividades de cada autor. De uma beleza comovente também são os Fioretti que fazem cinco considerações sobre os sagrados estigmas! Voltando à nossa estratégia:
Dois anos antes de o santo homem entregar o feliz espírito ao Senhor, enquanto morava no eremitério do Alverne, teve uma visão como de um Serafim que tinha seis asas, suspenso no ar, pregado numa cruz, com as mãos estendidas e os pés unidos. Trazia duas asas sobre a cabeça, duas estendidas para voar; as outras duas cobriam todo o corpo.
O santo ficou vivamente espantado com a visão e alternava sentimentos de medo e de alegria. Alegrava-se pela admirável beleza daquela figura; aterrorizava-o demais a horrenda fixação à cruz. Mas se alegrava também, porque ele o olhava com benevolência.
Enquanto refletia longamente e com ânsia sobre o significado dessa singular visão, não conseguiu compreender claramente nada, até que viu em si mesmo aquele milagre gloriosíssimo; um milagre, repito, que, no meu entender, é inaudito em todos os séculos passados.
De fato, nas suas mãos e pés apareceram as aberturas dos cravos e o seu lado direito como que traspassado pela lança. Na parte interior das mãos e na parte superior dos pés sobressaía uma espécie de crescimento da carne como se fosse a cabeça dos pregos. A parte exterior das mãos e a inferior dos pés, porém, traziam sinais alongados, como de pontas retorcidas dos cravos e que também excediam da carne restante. No lado direito, enfim, apareceu uma ferida circundada de uma cicatriz que, com frequência, sangrava e manchava a túnica e às vezes também a roupa de baixo.
Depois que tais pérolas apareceram nele, o homem de Deus fez de tudo para esconder aos olhos dos vivos o precioso tesouro com que o Senhor, por especial prerrogativa, o havia enriquecido; e isso para que não viesse a sofrer o mínimo dano, se alguém de sua intimidade o viesse a saber. (Jul 61,1-62,5)
Estamos em 1224, dois anos antes da morte de Francisco e décimo oitavo ano de sua “vida religiosa”. Notável observar que “era já um homem de consumada virtude e, todavia, julgava estar apenas começando” (Jul 59, 4). Mesmo tendo cultivado uma espiritualidade tão madura e sendo já tão íntimo de Deus, encontrava-se, na ocasião da impressão das Chagas, em retiro na gruta do Monte Alverne, realizando a quaresma costumeira em honra do Arcando Miguel (segundo São Boaventura). Daí já podemos aprender que sempre é tempo de investirmos na intimidade com Deus, sempre é tempo de retirar-se, recolher-se, silenciar-se para robustecer a relação pessoal com Deus, lançando mão sabiamente das práticas ascéticas ensinadas pela tradição. É bom lembrar que os evangelistas também narram o hábito do próprio Filho de Deus em recolher-se para orar, buscando a solidão do deserto ou da montanha para entender a vontade do Pai e tomar as decisões mais importantes de sua missão.
Momentos de recolhimento são necessários, apesar de não suficientes, para que o Senhor se dê a conhecer a nós de forma mais íntima. E lá no Monte Alverne, Francisco foi agraciado com uma experiência mística. Apareceu-lhe a visão de um Serafim (como descrito por Isaías em Is 6, 2) com a imagem de um homem pregado na cruz. Frei Celso Márcio Teixeira (2019) nos lembra que essa imagem é carregada de uma paradoxalidade significativa, pois ao mesmo tempo que o serafim, de admirável beleza, é sinal da glória de Deus, também aparece crucificado, ou seja, carregado de dor, sofrimento e horror da cruz. A mensagem, portanto, é a de que a glória de Deus Pai manifesta-se de maneira plena no Cristo Crucificado. E Francisco, como homem de acuradíssima sensibilidade, não permanece inerte diante dessa mensagem. De fato, sentia uma mistura de emoções enquanto contemplava a visão: alegria e êxtase pela beleza do que via, junto ao terror, medo e dor compassiva que a crucificação lhe causava. Francisco sempre compreendeu a íntima relação existente entre dor e amor, como os dois polos de um ímã. Sempre entendeu a Paixão de Cristo como a dor de um amor infinito. Mas a compreensão desse aparente antagonismo tem nos escapado. A completa aversão à Cruz e a tentativa de criar um paraíso terrestre ou pavimentar um caminho largo que nos dê somente o vislumbre da Glória resulta forçosamente em desilusão, como já nos alertava frei Constantino Koser há 50 anos, no 750º aniversário da Impressão das Chagas. À medida que se envelhece, vamos percebendo que os momentos de dor que ferem a nossa história são exatamente os responsáveis por nos transformar e aumentar a nossa capacidade de compreender e de amar. A dor lancinante do parto que gera vida e gera um amor tão divino descortina-se como um exemplo prático dessa dualidade dor-amor tão difícil de assimilar à sociedade dos analgésicos. Temos, então, mais uma lição de Francisco: amar o Amor que não é amado. Amar até doer, pois a dor aumenta ainda mais a nossa capacidade de amar! Desistir de encontrar um monopolo magnético e assumir a Cruz como caminho para a Glória! Enfrentar o Calvário para fruir do que foi vislumbrado no Tabor, afinal, “toda dor vem do desejo de não sentirmos dor”, como já cantava Renato Russo.
Por fim, cessado o êxtase da visão, apareceram-lhe os sinais da crucificação que antes havia visto no Serafim. Aparecia na carne de Francisco os sinais que ele já trazia há tanto tempo no coração. Se exteriorizava o amor pela Paixão que já se enraizara tão profundamente na vida e na alma do Santo de Assis. O amante torna-se imagem do Amado, como nos diz São Boaventura, marcado por obra do próprio Deus, não como imagem esculpida em pedras ou madeira por algum artesão. A impressão das Chagas de Cristo em Francisco torna-se como que o selo de uma conformação com Cristo que foi construída pelo Pobrezinho de Assis durante toda a vida. Assemelhado a Jesus na pobreza, na obediência, na castidade e nos principais atos de sua vida, agora assemelha-se também fisicamente, partilhando com Jesus os sofrimentos e dores da Crucificação, da maneira como sempre quis e pediu a Deus. Diante disso, podemos avaliar a nossa própria disposição em nos assemelharmos a Cristo, a fim de merecermos, de fato, o nome de “cristãos”. Segue-se, portanto, a terceira lição: buscarmos a estrita semelhança com Jesus, “amar como Jesus amou, sonhar como Jesus sonhou, pensar como Jesus pensou, viver como Jesus viveu”, já nos sinalizava Padre Zezinho. E se acharmos demais recebermos os sinais da crucificação, como Francisco, ou nos parecer aversivo demais aproximarmo-nos de Jesus na Cruz, podemos começar nos aproximando dos crucificados dos nossos tempos. Ao acolher o leproso, Francisco começa seu processo de abraçar a Cruz, transformando, como ele mesmo nos diz, o amargor em doçura. Fica a nós o convite para essa mesma transformação interior. Marginalizados não faltam aos nossos tempos, crucificados não nos faltam, apesar de não mais usarmos a cruz de madeira. Agora, crucificamos de outros modos.
E depois de tudo isso, frei Francisco de Assis, mesmo sentindo-se tão agraciado por Deus, não deixou de ser humilde. Fez o que pôde para esconder os sinais magníficos que tinha recebido do Pai, porque não queria de maneira alguma colher louvores para si. E mesmo debilitado pelas dores desses estigmas, somadas às inúmeras enfermidades que já lhe acometiam o corpo, não quis deixar de pregar, de conviver com seus irmãos e de publicar as maravilhas do Altíssimo e Glorioso Deus. Uma última lição: humildade e serviço. Dois imperativos na vida de Francisco que não foram deixados para trás nem pela debilidade física, nem pela certeza de que recebia os favores de Deus.
Podemos encerrar colocando em prática os conselhos de frei Tomás de Celano (1Cel 114) que nos convida a nos assemelharmos ao Serafim de seis asas, como Francisco o fez. Que tenhamos duas asas sobre a cabeça a fim termos sempre intenção pura e reto modo de operar em toda boa obra, esforçando-nos para agradar unicamente a Deus. Duas asas para voar, dedicando-nos à dupla caridade para com o próximo, quais sejam, o cuidado com as almas, levando-lhes a Palavra de Deus, e o cuidado com o corpo, auxiliando-lhes materialmente. E, por fim, duas asas cobrindo o corpo a fim de zelarmos pelo Espírito Santo que habita em nós e nos inspira sempre a voltarmo-nos a Deus. Velando esses três aspectos (mente, corpo e os irmãos e irmãs), podemos, então, iniciar uma caminhada de conversão, a exemplo de Francisco, e irmos nos configurando a Jesus Cristo, Senhor e Rei da História, Príncipe da Paz e Deus-conosco. E configurados a Cristo, poderemos com a mesma serenidade de Francisco, acolher a irmã morte, que não nos fará mal, mas nos deixará mais próximos do Amor.
Frei Carlos Antônio Sartin Júnior, OFM
Paz e bem!
Referências
FONTES FRANCISCANAS E CLARIANAS (FFC). Apresentação Sergio M. DAL MORO. Tradução Celso Márcio Teixeira… (et al.) Petrópolis: Vozes, 2004.
TEIXEIRA, Celso M. Franciscanismo: Estudos e reflexões. Belo Horizonte: Gráfica do Colégio Santo Antônio, 2019.
Complemente a sua leitura sobre os estigmas de São Francisco ouvindo agora mesmo o podcast Centelha Franciscana sobre o tema: