Mensagem de Quaresma – Frei Ronildo Arruda
“O tempo está realizado e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15).
Que o Senhor lhe dê a paz!
Em tempos tão difíceis de guerras pelo mundo, de indiferença social aos dramas humanos, de guerras ideológicas, políticas e culturais que assolam nosso País trazendo a nós polarização, discórdia e divisão nas famílias, nos grupos sociais outrora amigos, até dentro da Igreja, somos chamado, por Jesus, não só a conversão como também crê na força do Evangelho.
“Deus é amor” afirma o apóstolo João (1Jo 4, 8), e no seu amor Ele cuida de nós. E nos amou tanto que “enviou seu Filho unigênito ao mundo para que vivamos por Ele” (1Jo 4, 9). Assim deveríamos agir no mundo realizando as boas obras de Jesus levando amplos benefícios a todas as pessoas, agindo com misericórdia.
Ainda me lembro bem de minha infância na chácara do meu avô: não havia tantas estradas de acesso aos lugares, mas existiam os trieiros. O trieiro de acesso ao córrego, o trieiro de acesso as roças, os trieiros que tínhamos que andar com cuidado para campear o gado. No trieiro devíamos ter cuidado redobrado devido cobra. E era interessante: enquanto andávamos observando as novidades das pastagens, das plantas e flores silvestres, dos passarinhos, dava tempo de amarrar uma ponta do capim na ponta do outro para ver quem vinha atrás tropeçar. E tudo virava riso misturado com ira que era superada com desculpas e reconciliação. Tempo da Quaresma talvez seja isso: percorrer os trieiros de nossa existência olhando a vida como novidade como olha uma criança. O próprio Jesus nos ensina a acolher o Reino de Deus com o coração de uma criança (Mc 10, 15). E no espaço do coração puro e tranquilo, ou cheio de solavancos, que a oração faz morada.
Na casa dos meus avós havia uma tenda enorme de fazer farinha, e havia um forno de barro bem alto e bojudo. O danado era farturento! As melhores delícias de sabores de nossa infância na casa do vovô e da vovó saíam dali, da tenda de farinha. Nossos avós, nossos pais, não gastavam tempo conceituando ternura e fraternidade. Não. Tudo acontecia ali, no sopé do velho forno e da mesa das refeições. Hoje olhando para trás digo que Deus preparou para mim uma catequese muito simples: antes de tanto falar em pecados, devemos cultivar a graça de Deus na família, entre amigos, no lar por meio da generosidade, do trabalho, da gentileza, e de uma mesa bem-servida a exemplo da comensalidade que Jesus realizava com os seus. Talvez Quaresma seja isso: no espirito fraterno caritativo ensinado pelo Evangelho, lembrar-nos sempre: “amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês” (Jo 15, 12; 13, 34). Quaresma pode ser tempo de pensarmos onde faltamos com a ternura para com o próximo, para com Deus, para com todas as criaturas, e na paz de espírito aprender a partilhar, a viver a solidariedade, o altruísmo, a compaixão, a doação de nós mesmos de maneira discreta e anônima como nos ensina Jesus de Nazaré.
Desnatar o leite era o meu serviço de muitas quintas e sextas-feiras de minha meninice para preparar leite e fazer requeijão. Quando minha mãe ia “bater a massa” no tacho, era uma luta comigo. Eu ficava ali em volta do fogão, com o garfo, para ‘comer requeijão de liga’ quentinho. Depois de tanta traquinagem e das delícias do requeijão fumegante, nada de água para não constipar. Mas requeijão era comida especial para café da manhã na Semana de Guarda (hoje tríduo pascal). Enquanto isso, papai preparava o alho a ser plantado, na horta, na semana santa. E a família era envolvida nos mistérios da vida. Mistérios de vida e de fé que não havia explicação. Vivíamos, apenas. Vivíamos, ao modo de nossos pais, a comunhão de fé, de alma e de coração (At 4, 32) nossa fé, ainda que não tivéssemos tanto acesso nem a Sagrada Escritura, menos ainda a Missa cotidiana. Tínhamos, sim, a ternura. Meu avô, pai de meu pai, era quem passou para ele, na oralidade, ‘os ensinamentos das Escrituras’. Então na semana santa era tempo de silêncio, jejum e saber que Deus nos olha. E chagava a nossa mesa o requeijão com gosto de amor, e meses depois as réstias de alho lindas e farturentas, fruto do trabalho de todos nós, e do olhar e do amor de Deus. Quaresma pode ser tempo de pensar que jejum não é poda nem punição alimentar, mas prioridades para onde vamos canalizar nossa energia, o que queremos, e o que precisamos deixar, pois o tempo de cultivar alho e desnatar leite é tempo de renúncia de outros tempos para outras coisas, era o que papai e mamãe nos ensinava: “para tudo há momento, e tempo para cada coisa sob o céu” (Eclesiastes 3, 1), basta saber onde está nossa prioridade. Às vezes encontramos pessoas que não sabem nem sua prioridade, nem seu projeto, nem sua missão no mundo. O jejum clarifica nosso mente tão empanturrada de tantas coisas.
Assim penso que no hodierno a Quaresma deveria ser tempo de celebrarmos a redescoberta da ternura, da fraternidade, do saber cuidar e orientar nossos valores como graça de Deus, e não com sentimentos de dor, culpa, medo e angústia. O confessionário deve ser encontro com o perdão e autoperdão, e não palácio da dor. Com o mesmo embalo que percorremos os trieiros reais de nossa vida, precisamos pensar na “estrada que somos” como canta o poeta Flavio Venturini na música Clube da Esquina 2, e entender que na estrada que somos os erros de sinalização são curados quando compreendermos com autoconsciência, autoclareza e autoperdão que “no presente a mente, o corpo é diferente
e o passado é uma roupa que não nos serve mais” (Belchior – música velha roupa colorida), e buscarmos a reconciliação como busca sincera e humilde de uma criança para nosso autodesenvolvimento humano e espiritual.
Que nesta Quaresma possamos percorrer um caminho sincero e humilde de coração pedindo a Deus a graça da reforma interior com alegria, priorizando nossa conversão, a exemplo de São Francisco: “foi assim que eu, Frei Francisco, começou uma vida de penitência e conversão” (Testamento) sincera e fundamentada na oração a Deus Uno e Trino: “Senhor, ilumine as trevas do meu coração, dai-me fé verdadeira, esperança certa, amor perfeito (…)” para que a cada dia, na vida pessoal e fraterna, reconciliados “todos nós sejamos um (…) como nós somos um” (Jo 17, 21 – 22), como o viveu São Francisco de Assis agindo com misericórdia para com todos, em especial os enfermos (leprosos) e excluídos de seu tempo.
Que nesta Quaresma possamos testemunhar uma experiência de fé pessoal, eclesial, pastoral e missionária rumo a um processo de conversão e penitência sinodal. Caminho eclesial como nos fala o Papa Francisco na sua mensagem para Quaresma 2025: “caminhar juntos – Peregrinos de Esperança – num caminho sinodal”, como irmãos na fé, parceiros na esperança, participantes da mesma mesa da Palavra e da Eucaristia vivenciando a paz, o bem e o Evangelho, fontes de educação para o nosso coração, confiantes no amor de Deus, deixando-nos transformar pelo arrependimento, pela contrição, pela confissão, e busca de emendar-nos reconciliados com nossa história de vida, nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos, tudo fundamentado no amor “que tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13, 7).
Frei Ronildo Arruda, ofm